#5 - Brilha um “Starr”

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[ Beba com este post: uma bela taça de Bourgougne ]

Nova York não dá mole para ninguém. É apaixonante, irresistível, é inspiradora etc e tal, mas é também uma diva inquieta, ultra exigente, extremamente segura de si e, sim, rica, bem rica. Então, por que raios haveria ela de ceder espaço gratuíto a forasteiros vindos de plagas menos, digamos, estelares? Se você quer fazer algo por aqui, a cidade até permite. Mas fazer acontecer “bold”, virar “king of the hill, top of the heap”, alto lá! Tem que entrar naquela fila ali, que de tão longa poderia abraçar o Central Park de cabo a rabo. Fico imaginando quantas vezes Sinatra entoou “if I can make it there, I’ll make it anywhere” até ser aplaudido de pé nessas bandas...

E a coisa fica ainda pior nas áreas de vocação secular e liderança inconteste da cidade que nunca dorme: ser sucesso em qualquer projeto de cultura, entretenimento e gastronomia em Nova York é tarefa para gente que não está a passeio. Mas, todos sabemos, existem aqueles que nasceram com estrela. E, trocadilhos óbvios à parte, Stephen Starr parece ser um desses.

Nascido na Filadélfia e criado em New Jersey, Starr tem o perfil típico do empreendedor manga-arregaçada-mão-na-massa, dotado da poderosa combinação intuição e sensibilidade adquirida na escola crua das ruas. Confessou numa entrevista que decidiu que “teria que ter sucesso” depois de perder uma namorada para o colega mais popular da escola. Bom, esse dissabor quase todos tivemos, mas não é tão fácil assim ir à forra. Stephen foi. Aos 15 anos, apaixonado por música, cismou em ser locutor de rádio. Correu atrás, e em alguns meses conseguiu produzir e apresentar um programa de rock na estação da sua escola. Na universidade, flertou com a televisão, montando uma pequena produtora em sociedade com um professor. Mas uma força maior o levava para o mundo do entretenimento. Aos 21, na Filadélfia, criou o Grandmom Minnie’s, um espaço singelo onde servia comida honesta durante o dia e apresentava espetáculos nem tão honestos de “stand-up comedy” à noite. Anos depois, alugou um galpão mais espaçoso e criou o Star, um cabaret completo que descobria novos talentos. Stephen se orgulha de ter programado noites com Jerry Seinfeld antes de ele ser o Jerry Seinfeld. A Via Láctea do showbiz parecia sorrir para Starr, que ousou empreendendo a casa de shows Ripley’s Music Hall e a produtora de espetáculos The Concert Company, que chegou a ser responsável por shows de Madonna.

Foto: site oficial Continental

Foto: site oficial Continental

O empreendedorismo pulsava nas veias de Stephen, que não tinha o menor pudor em lhe dar vazão. Numa manhã de 1995, passou em frente a um tradicional diner da cidade que acenava com uma placa de “Aluga-se” pregada na fachada. Abraçou o imóvel antes de saber o que colocaria lá dentro. Estava de malas prontas para uma viagem à Costa Oeste, então resolveu pensar nisso depois. Mas, chegando a Los Angeles, ficou encantado ao ver uma velha tradição se transformar numa nova onda: nos bares mais badalados e lotados da cidade, jovens casais e beldades locais se acotovelavam à beira dos balcões para bebericar martinis em taça Y... Starr intuiu que os coquetéis clássicos da “era de ouro” americana estavam de volta. E na sua Filadélfia ninguém sabia disso ainda. Decidiu imediatamente que o imóvel do diner decadente se transformaria no Continental, um restaurante transado de comida americana afetiva que serviria drinques clássicos com pompa e circunstância. Starr tinha enxergado com faro e precisão a tendência se formando: a coqueteleria retrô virou uma febre em todos os cantos refinados do país, e o Continental se transformou, num twist, no seu representante mais legitimo. Starr se apaixonou intensamente pelas filas na sua porta e pela gastronomia. Assim, a fome se juntou à vontade de comer e o empreendedor insaciável virou um “serial-restaurateur”.

Ao longo dos últimos 20 anos, Stephen Starr construiu um admirável grupo de hospitalidade e gastronomia, detentor de nada menos que 30 diferentes marcas e conceitos de restauração espalhados por cerca de 50 operações em seis cidades, tocados no dia a dia por mais de 5 mil colaboradores.

Mesmo com toda essa potência, para Stephen Starr, brilhar em Nova York não aconteceu da noite para o dia. Em 2006, novamente antecipando um modelo de entretenimento gastronômico que se tornaria uma febre em Manhattan, Starr montou o Buddakan, um monumental mix de club noturno e restaurante oriental ultratemático e cenografado com grandiloquência dos pés à cabeça. A cidade ficou chocada com toda aquela opulência e abriu a temporada de opiniões e avaliações sobre o Buddakan. Enquanto os comensais refletiam, Frank Bruni, temido crítico de gastronomia do New York Times à época, escreveu que estava surpreso com a qualidade da comida daquele restaurante-balada de 1500 m2 que servia animadíssimas 450 pessoas ao mesmo tempo. Gourmets de plantão conheceram assim o nome do restaurateur da Filadélfia e, vá lá, deram-lhe um crédito. A seguir, Starr repetiu a aposta trazendo o não menos dramático japonês Morimoto à cena. Os dois projetos tiveram enorme sucesso de público, mas, mesmo assim, foram considerados por muitos críticos “temáticos demais”, “kitsch demais”, “barulhentos demais”, “exagerados demais”.

Até que, em 2016, Starr, em dupla com o chef Daniel Rose, concebeu o Le Coucou, um ambicioso e elegantíssimo restaurante dedicado às mais ancestrais páginas da culinária francesa, no final da Lafayette Street, eixo exclusivo do Soho.

Os nova-iorquinos já se preparavam para achar o Le Coucou temático, kitsch, barulhento e exagerado demais, até que o jornalista Pete Wells escreveu no New York Times que o restaurante conseguia resultados estupendos de inovação e frescor apesar de sua declarada inspiração numa cozinha old-school francesa e sua atmosfera “romântica-retrô-chique”. E salpicou 3 estrelas para o Le Coucou. Em seguida, a mais ousada cria de Starr foi eleita como o melhor restaurante dos Estados Unidos pela revista Food & Wine, e o melhor novo restaurante pelo respeitadíssimo e cobiçado prêmio entregue pela Fundação James Beard aos campeões da gastronomia e da hospitalidade no país. E Stephen Starr foi reconhecido pela mesma fundação como o restaurateur do ano. A cidade correu então para o Le Coucou e foi obrigada a prestar mais atenção no forasteiro da Filadélfia.

Foto: site oficial Le coucou

Foto: site oficial Le coucou

Na minha modesta opinião de também forasteiro em Nova York, o Le Coucou produz, neste momento, uma das mais lindas experiências gastronômicas da cidade ao equilibrar – de maneira muito sensível e inteligente – passado, presente e futuro. O cardápio é passadista, pois recupera receitas, preparos e ingredientes de uma cozinha francesa notadamente clássica, muito mais próxima dos livros de Escoffier do que da malhada Nouvelle Cuisine. Há uma predileção acentuada por carnes de caça, entranhas, miúdos, bases, molhos e acompanhamentos potentes e densos ao longo do menu. Mas, ao chegar à mesa, os pratos apresentam estética atual e delicadeza de sabor alinhados com as mais vanguardistas mesas mundo afora. Na prática, o Le Coucou consegue fazer a mágica de transformar uma refeição estrelada por tête, ris de veau, jus à la moelle, tout le lapin e pigeon num delicioso, leve e alegre jantar cosmopolita. O programa no Le Coucou se completa com a arquitetura do espaço. O ambiente é mais uma vez dramático e grandioso como Starr parece gostar, mas tem um refinamento único que consegue equilibrar o barroco, o romântico e o contemporâneo, criando cantos inesquecíveis de tão belos. O bar logo na entrada e a área próxima à impecável cozinha aberta são dos espaços mais bonitos que já vi num restaurante.

Se você ficou curioso para conhecer as criações de Stephen Starr em Nova York, mas não quer desembolsar no mínimo 200 dólares por cabeça para jantar no Le Coucou e não tem interesse por projetos orientais temáticos, mando aqui duas sugestões infalíveis: o Upland, restaurante mais casual, de acento italiano e espírito californiano na Park Avenue, é um programaço!

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E o pequeno café La Mercerie, que fica dentro da refinada loja de decoração do estúdio de arquitetura Roman and Williams (não por coincidência, os responsáveis pelos ambientes da maioria dos projetos de Starr), é hoje um dos mais concorridos lugares da cidade para um café, almoço rápido ou taça de Cidra no fim da tarde. Eles também brilham como Starr.

[ Se você quer conhecer mais do Le Coucou, leia também: “Le Coucou Pays Rich Homage to Old-School French Cuisine” ]

 
 
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