#4 - É um pássaro? Um avião? Não, é Keith McNally de volta!

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Semanas atrás, chorei que nem criança vendo pela TV um ser humano de nome Eliud Kipchoge correr pelas ruas de Viena por 1 hora, 59 minutos e 40 segundos, perfazendo pela primeira vez na história os 42 quilômetros e 195 metros que compõem uma maratona em menos de 2 horas. Um feito sobre-humano. Pessoalmente, tenho grande admiração por maratonistas. São heróis da resistência e da coragem. Meio loucos, chegam até onde pouca gente vai à custa de sangue, suor e lágrimas correndo pelas veias.

Tenho pra mim que todo restaurateur que se preze é no fundo também um maratonista. Porque sobreviver ao longo do tempo no mundo da hospitalidade e da gastronomia não é para todo mundo, muito menos para corredores de 100 metros rasos ou gente obsessiva por sucesso instantâneo. Um bar ou restaurante de caráter se constrói com trabalho duro e diário, detalhe a detalhe, quilômetro a quilômetro, através dos anos. Os que estão aí há tempos, construindo várias histórias bonitas, considero verdadeiros Ironmen.

E, mais uma vez, nesse pódio enxergo Keith McNally. Depois de criar seis marcas que mudaram o estilo e a geografia gastronômica de Manhattan e de produzir um dos maiores casos de sucesso que a cidade já assistira com o Balthazar, McNally poderia administrar as conquistas e gozar narcisicamente da fama de Midas flanando cheio de si pelas ruas de Downtown. Mas, não contente após chocar o mercado com o Balthazar, aumentou sua velocidade empreendedora produzindo joias cool em série na cena superseletiva da restauração nova-iorquina: o Pastis (1999), uma versão mais descontraída e boêmia do Balthazar, inaugurou a invasão gastronômica do Meatpacking District quando a área era exclusivamente o canto obscuro dos açougues industriais da cidade; o Schiller’s (2004) foi um bar-restaurante pioneiro na recuperação do ultramarginal Lower East Side, hoje um dos epicentros da economia criativa de Manhattan; o Morandi (2007) trouxe um sopro de novidade e bossa à cozinha casual italiana da cidade; o Minetta Tavern (2009) recuperou um darling do West Village dos anos 30 com seu clima noir e seus indefectíveis steaks e burgers dry-aged que arrancaram 3 estrelas do mais temido crítico do New York Times; o Pulino’s (2010) detonou, com pizza, a invasão repentina da Bowery Street, histórica rua trashy, repleta de lojas especializadas em equipamentos profissionais de cozinha, que se transformou em antro foodie a partir da chegada de McNally. Cinco novos espaços, todos no alvo!

Como devoto fiel da seita McNally de criar bares e restaurantes, acompanhei e visitei esses lugares ao longo dos anos. O DNA McNally se fazia presente sempre, em todos eles, com uma consistência impressionante. A maioria dos críticos, especializados ou amadores, começou a implicar com o “irritante” sucesso desses projetos, preferindo avaliá-los como “comerciais”, sempre destacando sua estética cênica ou a capacidade de McNally de atrair descolados e o beautiful people do pedaço, seu tal superpoder de criar hot spots. Eu sempre preferi procurar as ideias e os insights genuínos usados corajosamente por McNally para encantar e alegrar hordas de clientes, fazendo lotar diariamente os salões de cada uma de suas casas por anos a fio: pra mim, todos os projetos de McNally foram visionários em sua localização, revitalizando áreas perdidas da cidade; inovaram formulando experiências completas que depois foram copiadas mundo afora, misturando com personalidade única características clássicas de bares com cafés, brasseries, bistrôs e inserções cirúrgicas de fine-dining; e, por fim, sempre entregaram ótima qualidade gastronômica num formato novo, casual e divertido, inaugurando de fato um segmento inédito no mercado de bares e restaurantes, o “fine-casual”.

Todos sabemos, entretanto, que na nua e crua vida real até os super-heróis mais poderosos tomam porradas. Em 2015 McNally concluiu que tinha errado no produto que colocara na linda esquina da Bowery, onde instalou sua pizzaria chique Pulino’s. Transformou-a então em Cherche Midi, abusando da receita bar-café-bistrô malhada pela linhagem Balthazar-Pastis-Schiller’s... Eis que o projeto também não implacou e rapidamente fechou suas portas. Na mesma fase, o Schiller’s foi cercado por inúmeros concorrentes no Lower East Side e perdeu sua tração, encerrando suas atividades. Pá de cal, o imóvel que abrigava o bombástico Pastis foi vendido para uma grande empresa imobiliária, que resolveu levantar um suntuoso prédio no local, desalojando McNally. Em 2017, Keith teve um enfarte. Afastou-se, naturalmente, do dia a dia do seu império para se recuperar. E a cidade ficou imaginando se esse Bruce Wayne gastronômico teria ainda forças para vestir novamente sua capa.

Mas em 2018 McNally reapareceu com o surgimento de uma nova cena no Distrito Financeiro (agora carinhosamente chamado de “FiDi” pelos amantes de siglas), no limite sul da ilha, totalmente reorientado depois da catástrofe do 11 de Setembro. Um novo e lindíssimo bar-restaurante com sotaque francês no mais autêntico estilo McNally surgiu repentinamente no térreo do cinematográfico hotel Beekman. Augustine é o seu nome.

Mais uma vez, lá estão o clima de festa, o rigor estético bordado centímetro a centímetro com enorme bom gosto, o hi-lo, o retrô chique, a comida confortável, generosa, com ginga downtown. A cidade suspirou: McNally estava de volta. Fui ao Augustine meses atrás. Sentei no meu canto favorito de todo restaurante – em frente ao bar – e pedi um Old Fashioned. Comi uma espetacular porção de tutano e o melhor Lobster Roll de Gotham City. Saí contente pela Wall Street, pensando até em comprar umas ações...

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Para não deixar dúvidas de que estava de novo no jogo, McNally desenterrou o contêiner onde guardara, persistentemente, por sofridos cinco anos, todos os móveis, equipamentos e adornos do seu restaurante desalojado do Meatpacking para anunciar de boca cheia: o Pastis estava de volta! Ironicamente, ele fica agora a menos de 100 metros do imóvel do qual foi expulso em 2014.

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Assim que pus os pés em Nova York neste meu período “pesquisador-devorador”, fui rever o Pastis. O trabalho de reconstrução lembra o capricho de quem restaura prédios históricos e obras de arte. Do icônico relógio que separava ambientes no Pastis original aos espelhos com antigas propagandas da marca do aperitivo francês que dá nome à casa, tudo está novamente ali, colocado com saudosismo afetivo e pertinente, ajudando a recriar a famosa atmosfera “gauche” que arrastava trendsetters de todos os estilos. O cardápio foi pouco renovado e mantém sua objetividade e seu acento “Marais encontra West Village”. Mas achei que o padrão gastronômico foi elevado, graças a um notável aumento de rigor com a escolha das matérias-primas e ingredientes. Comi uma costeleta de porco à milanesa que me deixou com saudades eternas. Duas semanas depois, repeti a dose. E continuo sentindo saudades...

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Os críticos e vilões da cidade discutem neste momento se McNally precisava ressuscitar um projeto enterrado cinco anos atrás, com um menu já muitas vezes visto, numa região hoje turística e “soooo mainstream”... Eu fiquei feliz em ver que esse mítico restaurateur de Nova York continua firme na luta do bem viver contra o mal humor depois de 40 intensos anos. Tenho enorme admiração por esse bravo corredor de longuíssimas distâncias. Fiquei sabendo que, para recolocar o Pastis de volta na estrada, McNally buscou reforço para o time, no melhor estilo Vingadores, da Marvel: juntou-se a Stephen Starr, outro multirestaurateur que fez fama na Filadélfia e está invadindo Manhattan por terra, mar e ar. Mas essa já é uma outra história!

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[ Se você quer conhecer ainda mais a trajetória de Keith McNally, leia também: “Beef and Décor, Aged to Perfection” e “Another Opening: Cue the Crowds” ]

 
 
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