#8 - Missy vê estrelas

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Minutos após receber de Missy um maiúsculo “não” seguido de três pontos de exclamação como resposta para a proposta de sociedade num novo restaurante, Sean Feeney já estava de volta ao seu apartamento no andar de cima, debruçado sobre uma resma de folhas de sulfite, rabiscando ideias, conceitos, princípios e detalhes de como ele achava que deveria ser esse lugar. Ele tinha convicção de que aquele “não” curto e seco de Missy era apenas uma reação inicial e natural da chef. Como habitante de Wall Street, sabia de cor e salteado que “não” é apenas uma palavra qualquer do vernáculo... Aceitou a recusa como um obstáculo empresarial saudável e apetitoso a ser vencido. Arregaçou com vontade as mangas e passou a pensar com seriedade sobre o seu empreendimento com Missy, como se o projeto fosse líquido e certo. Num dia, Sean fazia uma lista de nomes que tinham a cara do restaurante, passava-a por debaixo da porta do apartamento de Missy, voltava para casa e ficava esperando um sinal... Noutro, elencava bairros e ruas ideais para o empreendimento e compartilhava com a vizinha. No ápice de sua motivação, colocou no papel a visão e a missão do projeto e marcou uma reunião com a cobiçada sócia para discutir o conteúdo. Missy disse anos mais tarde que realmente não sabia mais se Sean estava louco e ingenuamente obcecado por aquela ideia, se queria somente motivá-la ou se estava apenas lhe pregando uma peça: “Como e por que eu vou discutir com meu vizinho querido do mercado financeiro a missão de um restaurante que não existe e nunca vai existir?”. Do outro andar, Sean revelou tempos à frente que muitos dos “materiais de estudo do projeto” que enviou a Missy voltaram para sua casa amassados, rasgados ou simplesmente rabiscados com uma mensagem desencorajadora, tipo “P****, Sean, esquece essa m*rda!”. Mas nada disso tinha importância, Sean tinha uma missão que o movia: trazer de volta o talento de sua amiga Missy para a cena gastronômica de Nova York.

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Meses depois de Sean ter sugerido a Missy a parceria, a chef o chamou às pressas para lhe contar uma novidade: acabara de receber uma proposta recheada para voltar ao mercado, feita por um dos maiores restauraters dos Estados Unidos. O empresário estrelado estava desenvolvendo um ambicioso projeto para inaugurar um restaurante contemporâneo com acento italiano no sul da Park Avenue e queria que Missy liderasse a cozinha da empreitada. O salário era, para dizer o mínimo, convincente, e a oportunidade de uma futura sociedade, mais ainda. E depois de mais de um ano afastada dos holerites e bônus, a situação financeira de Missy não aceitava mais desaforos... Sean ouviu a história com atenção e foi tomado por sentimentos conflitantes: estava feliz por Missy, mas arrasado por ver seu projeto em conjunto definitivamente implodido, antes mesmo de ter sido detonado. Na dúvida, deu um longo abraço na amiga e lhe ofereceu ajuda como conselheiro nas negociações finais com seu poderoso pretendente. Brindaram aos novos tempos e seguiram em frente.

Dias depois, Missy resolveu de uma vez por todas se reconectar com o mercado para o qual estava retornando, assistindo por streaming à cerimônia de entrega do prêmio anual aos melhores da gastronomia dos Estados Unidos, organizado pela James Beard Foundation, diretamente de Chicago. Na última década, aquele era o primeiro ano em que ela não ia à essa festa, então resolveu rever sua tribo à distância, pela tela do computador. Um a um, os vencedores foram sendo chamados, a maioria figuras conhecidas de Missy, que, verdadeiramente emocionadas e orgulhosas, soltavam a voz e as lágrimas em seus discursos de agradecimento. Foi então que Missy se deu conta, sozinha em seu estúdio na Grove Street, que todos aqueles profissionais premiados que pareciam levitar de felicidade sobre o palco da cerimônia estavam abraçados a sócios e parceiros essenciais em suas jornadas. Por trás da maioria dos maiores chefs, bartenders, sommeliers e empresários dos melhores bares e restaurantes do país, brilhava a história de uma relação genuína entre pessoas que queriam construir algo juntas. Mais do que em outros mercados, projetos de hospitalidade e gastronomia vencedores são sempre fruto de um trabalho hercúleo, incansável e diário de pessoas conectadas numa sintonia coletiva. Bares e restaurantes são uma entidade humana. São pensados, feitos e tocados quase que exclusivamente por gente. Mais que estrelas solitárias ou toques de Midas, os campeões desse setor nascem e correm pelas mãos de sociedades convergentes, times organizados e equipes com sonhos compartilhados de futuro. Ao ver mulheres e homens alçados à posição mais alta do mundo em que ela habitara por décadas, Missy enxergou pela primeira vez que o grande barato desse universo é a sua capacidade de conectar pessoas de verdade, construindo trajetórias com significado de carne e osso. E que, depois de muito ter trabalhado e se dedicado a buscar sucesso nesse mundo, ela acabara se esquecendo de abraçar o maior patrimônio que o seu ofício é capaz de proporcionar: relações humanas verdadeiras. Missy olhou em volta e percebeu que estava só. Talvez porque ela estivesse se esquecendo de prestar atenção nas pessoas que andavam a sua volta. Subiu correndo as escadas do prédio da Grove Street e entrou na casa de Sean. Aos prantos, abraçou o vizinho e gritou para todo o West Village ouvir que queria abrir um restaurante com ele.

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Ao longo de dois anos, Missy e Sean dividiram as delícias e agruras inerentes à construção de qualquer verdadeira sociedade. Mais que isso, viveram lado a lado as emoções intrínsecas à montagem de um restaurante na hostil selva de Nova York. Enfrentaram landlords, permits e prestadores de serviço desatentos... Padeceram com as dificuldades e vibraram com suas melhores ideias, celebraram pequenas conquistas e sofreram com as piores incertezas, brigaram por diferenças e agradeceram por terem um ao outro. Missy e Sean criaram juntos, passo a passo, um restaurante que, no fundo, exprimia a amizade que haviam construído. Num imóvel improvável na parte norte de Williamsburg, no Brooklyn, onde operara uma oficina mecânica, encontraram sua morada, depois de visitar mais de 30 pontos na cada dia mais cara Manhattan. Lilia seria o seu nome. A comida que os dois gostavam de compartilhar quando recebiam seus melhores amigos na Grove Street seria a essência dos sabores que ali serviriam. Comida italiana simples, feita para agradar quem a gente gosta.

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No início de 2016 o Lilia foi inaugurado. Missy e Sean finalmente conseguiram contar sua história através de pastas ultrafrescas, molhos intrigantes e viciantes, sempre com poucos e bons ingredientes, e hospitalidade genuína, numa atmosfera que muito lembra uma casa de campo chique-simples dos sonhos de todos nós. A cidade fez literalmente fila na porta para escutar o que os dois vizinhos tinham a dizer. E adorou o que ouviu. O Lilia foi o mais premiado e aclamado restaurante do ano. Missy retomou sua paixão pela cozinha e Sean descobriu que nascera com o DNA da hospitalidade. Quase quatro anos depois, o primogênito de Missy Robbins e Sean Feeney segue sendo um dos cantos mais queridos e disputados de Nova York. Estive lá cinco vezes. Cada uma delas foi melhor do que a anterior. É comida que esquenta a alma e alegra o papo. Acho difícil explicar por que o Lilia é tão bom. No fundo, penso que é por sua espontaneidade: dos lindos janelões que restaram da oficina até os sorrisos de quem nos atende ali, tudo parece ser de verdade. Se não fossem as filas, gostaria de comer toda semana no Lilia, até o fim dos tempos. Espero que você vá lá conferir.

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Três anos depois, o sucesso do Lilia ecoou no lado sul do Brooklyn, Missy e Sean foram convidados a ocupar a loja térrea de um novíssimo condomínio residencial com uma nova ideia. Ali instalaram o Misi, um restaurante ainda mais essencial do que o Lilia, que executa à perfeição um cardápio moderno e inteligente com irresistíveis dez antipasti à base de vegetais, dez pastas produzidas sempre na casa, no próprio dia em que serão servidas, coroadas por molhos supersimples e absurdamente saborosos (não há os tradicionais secondi à base de proteínas no cardápio do Misi) e apenas uma sobremesa: um intenso e inesquecível sorvete artesanal confeccionado lá mesmo. O de azeite de oliva é uma obra de arte. O ambiente do Misi é acolhedor e informal como os donos e tem uma das cozinhas mais lindas que já vi, totalmente integrada com uma enorme fileira de mesas altas comunitárias para os clientes praticamente conviverem por duas horas com as equipes de cozinha, enquanto devoram seus pedidos. O Misi é o restaurante aonde mais gosto de levar meus amigos brasileiros que chegam a Nova York famintos por comida gostosa. É infalível, todos saem sorrindo.

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Missy Robbins e Sean Feeney seguem sendo vizinhos de porta, mas mudaram de bairro. Saíram de Manhattan e foram para Williamsburg, para estarem mais próximos de suas crias. Mais juntos do que nunca, persistem polindo sua amizade, sua sociedade e a missão que escreveram a quatro mãos: “fazer o dia das pessoas melhor, todos os dias”. É assim que eles estão construindo um dos mais interessantes e criativos novos grupos de hospitalidade e gastronomia de Nova York. À empresa que fundaram juntos deram o nome de Grovehouse Hospitality Group. Talvez para nunca esquecer que daquele mágico encontro no pequeno prédio do West Village nasceu essa história feliz.

PS: Ouvi essa inspiradora história do encontro entre Missy Robbins e Sean Feeney durante uma aula na Columbia University e no Welcome Conference, o principal encontro da chamada “indústria da hospitalidade” nos Estados Unidos. Sobre hospitalidade e o cara que trouxe esse conceito para o ramo de bares e restaurantes, pretendo abrir o nosso papo em 2020 aqui neste “Devorando NY”. Aproveito esse momento para desejar a quem tem me acompanhado nessa viagem um final de ano cheio de coisas gostosas e promissoras. Até!

 
 
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