#10 - Danny Meyer e a poção mágica

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Já divagamos por aqui, o mundo sem o Google era insuportável! Saí pela porta do Union Square Cafe, naquela longínqua sexta-feira de 1998, recompensado pelo acolhimento dispensado pela contagiante equipe da casa e animado pelos efeitos da garrafa de um ótimo Cabernet californiano, caminhando pela rua 19 em direção à Union Square para apanhar o metrô. Eu não parava de citar detalhes da experiência daquela noite para a Alessandra, parecia um moleque recém-chegado das férias na Disney contando descobertas e vantagens para os amigos do bairro:


 — Você viu que a garçonete sugeriu um vinho mais barato do que o que eu tinha escolhido?
 — Não tinha percebido, que legal, hein!
 — E você viu que ela trouxe duas colheres de sobremesa para eu poder experimentar seu cheesecake?
 — É, ela era ótima mesmo! — Ale já demonstrava um certo cansaço dos meus elogios a Amanda, então resolvi mudar de assunto...
 — E ela falou que o segredo deles é o dono do restaurante, o tal Danny Meyer... Nunca tinha ouvido falar dele! Vou pesquisar sobre esse cara.
 

Passados todos os efeitos da visita, na manhã seguinte eu só lembrava que tínhamos vivido uma excepcional noite, que a brigada do Union Square Cafe era impressionantemente simpática e que a garçonete me entregara a senha da poção mágica ao cair da noite: Danny Meyer. Mas o que fazer com aquela dica? Como saber mais sobre um jovem empreendedor, dono do restaurante “mais querido de Nova York”, que parecia ser aficionado por cuidar bem de seus clientes e que criara uma fórmula potente de como fazê-lo? Jantar cinco vezes por semana no Union Square Cafe para mapear seus truques não cabia no meu bolso... Fazer plantão na porta do lugar até o sujeito aparecer e convidá-lo para tomar um café e trocar experiências não ornava com minha timidez... O que fazer então? Procurar o verbete “Danny Meyer” na Barsa? Comprar todas as edições anteriores do New York Times até encontrar a crítica do restaurante dele? Não era fácil pesquisar no século passado...

Voltei para São Paulo, pensei por semanas e concluí que não havia muito a fazer... Conversei com amigos que visitavam Nova York com frequência, prioritariamente para comer e beber, e com alguns jornalistas antenados e especializados no ramo. Assim aprendi que Danny Meyer não era um chef de cozinha, e sim um restaurater muito querido em Manhattan porque sua primeira cria havia iniciado a recuperação de uma região largamente deteriorada pelos anos. A Union Square, marco urbanístico do século XIX na cidade, havia se transformado num fosso soturno que transbordava mal-estar e mal cheiro vizinhança afora. Não havia comércio de qualidade que vingasse ali desde os anos 1970, o pedaço parecia condenado à insignificância dos pequenos prestadores de serviços ordinários, dos ambulantes de segunda categoria e dos aluguéis de baixo preço. A portentosa praça que servia de convergência para grandes avenidas no Midtown sentia cada vez mais carência de personalidade e de vitalidade, fadada a um sufocamento que parecia inevitável entre os dois extremos mais festejados da cidade. Mas eis que surgira um jovem bem-nascido, bem-intencionado e corajoso, com uma bandeja na mão e uma ideia na cabeça: montar um restaurante tão delicioso e acolhedor que pouco importava seu endereço. Esse jovem tinha 27 anos e nenhuma experiência profunda no ramo quando, fugindo dos já assustadores preços dos aluguéis dos quarteirões comerciais mais cobiçados, arregaçou as mangas para dar vida a um sonho romântico, de certa maneira inconsequente e juvenil, montando a 50 metros da Union Square um espaço cheio de bom gosto, preenchido por gastronomia casual-chique americana, poucas e boas obras de arte e, principalmente, profissionais profundamente apaixonados pelo servir. A vizinhança mais abastada, desesperada pelo oxigênio das boas notícias, fez fila na porta para conhecer o trabalho daquele rapaz magro e sorridente que caminhava com pressa para cima e para baixo pelos quarteirões do bairro nos meses anteriores, e que parecia ingenuamente ignorar a nuvem carregada que persistia nos céus da Union Square. O susto foi enorme: a comida era ótima, o lugar era solar, os funcionários transbordavam uma alegria contagiante e o rapaz, que se chamava Danny, recebia cada um que entrava como fazemos quando um ente muito querido surge em nossa porta. Mais do que o melhor restaurante do bairro, o Union Square Cafe resgatou a autoestima de uma região e assim se tornou, em meses, o restaurante que os vizinhos orgulhosos queriam mostrar para o restante da cidade. Não tardou para o New York Times correr para entender aquela novidade e, também encantado pelo clima de confraternização, boas intenções e pacto com qualidade, salpicar três estrelas em sua crítica semanal para o Union Square Cafe. Assim nascera, num sequenciamento inédito, o DNA do mais querido restaurante dos nova-iorquinos, do mais respeitado grupo de gastronomia dos EUA e do mais influente empreendedor desse setor.

Mesmo não tendo reunido informações detalhadas sobre a genética do primogênito de Danny Meyer, meu jantar no Union Square Cafe foi fundamental para minha formação como criador e operador de bares e restaurantes. Foi ali que uma crença já muito curtida em nossa sociedade se transformou numa verdade para mim: nossos espaços não vendem comida e bebida, mas sim momentos gostosos, ricos de uma energia que chamávamos internamente de pequenas porções de felicidade. Lembro que voltei daquela curta estada em Nova York energizado e mais confiante para seguir nosso caminho, apostando com garra nos nossos projetos. Sentia então que não estávamos sozinhos no mundo, havia gente da “primeira divisão” acreditando na mesma ideia de encantar seus clientes por meio de uma vontade verdadeira de dar carinho. Por aí seguimos, de olho em Danny Meyer e firmes em nossa estrada.

Até que no Carnaval de 2007 escapei novamente com Alessandra para Nova York, para visitar a irmã dela, Cláudia, que então morava lá, e, inevitavelmente, para explorar algumas das novas mesas da cidade. Logo na chegada, Cláudia, jornalista e grande leitora, apareceu toda feliz em nosso hotel trazendo um presente pelo meu aniversário recém-completado: um lindo livro, de capa dura, chamado Setting the Table: The Transforming Power of Hospitality in Business.

— Achei esse livro a sua cara, está fazendo o maior sucesso, o cara é dono de restaurante como você!
O cara em questão era Danny Meyer. Dei um longo e sufocante abraço de urso na minha cunhada e, enquanto ela se recuperava, arranquei-lhe o livro das mãos:

— Nossa, acho que você gostou mesmo do presente!
— Cláudia, esse é o Danny Meyer! Esse livro deve ter a receita da poção mágica! Eu te amo!

Devorei a 1ª edição de Setting the Table em um mês, plugado num Michaelis Inglês-Português para ajudar na tradução. Mais que a fórmula, o livro revelava de maneira delicada e minuciosa quem era Danny Meyer, de onde vinha sua paixão por restaurantes, qual era sua visão sobre o mercado, como ele buscava implementar suas ideias e criar suas marcas. Danny revelava por inteiro, sem rodeios, sua melhor receita: criara um restaurante para que ele e todos que ali trabalhassem fossem felizes, pois acreditava que gente feliz faz bem o que faz, encanta seus clientes e os contagia com essa corrente de felicidade. Danny contrariava Kotler, Levitt, Porter, Al Ries e Jack Trout de uma só vez: seu foco não era o cliente, eram os colaboradores. Estes sim deveriam dar conta de conquistar os clientes. Uma ideia tão simples quanto revolucionária, ainda mais vinda de um setor onde a relação dono-funcionário vivia às turras e litígios trabalhistas. 

Aquelas páginas começaram a me parecer realmente mágicas, pois uma série de fatos, pensamentos e convicções de Danny eram a mais perfeita descrição de fatos, pensamentos e convicções da nossa trajetória. Modestamente, guardadas as infinitas proporções, eu também era um jovem romântico e inconsequente que aos 26 anos abdicara de uma carreira “segura” para, com meus sócios, criar um comércio de meio de quarteirão que tinha a missão de recuperar a autoestima do botequim brasileiro e dos personagens que o compunham. As páginas de Setting the Table confirmaram para mim que eu realmente encontrara um sentido para minha carreira. Mesmo não sendo chef, bartender ou sommelier, eu tinha como empreendedor e restaurater a oportunidade única de criar uma cultura rica e potente a partir de um fazer autoral e genuíno que causasse impactos positivos reais para as pessoas, principalmente para clientes e funcionários. Acho que a Cláudia nunca soube, mas ela havia me presenteado com o livro que para mim passaria a ser sagrado por propagar a religião que eu resolvera para sempre adotar: a hospitalidade.

 
 
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