#2 - Por que Keith McNally é meu herói favorito em Nova York (parte 1)

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Numa manhã comum do longínquo ano de 97 do século passado, peguei o Estadão na porta dos fundos, fiz café, sentei na poltrona preferida, li as chamadas de capa e, automaticamente, puxei o Caderno 2. Todo dia eu fazia tudo sempre igual. Folheei as páginas centrais e cheguei à contracapa do segmento de cultura. Tudo normal, mas daí... Boom! O que era aquilo? Que lugar era aquele? À minha frente, uma página inteira dedicada a um restaurante nova-iorquino de nome irresistível: Balthazar. Quatro grandes e dramáticas fotos de detalhes do ambiente do tal novo darling gastronômico de Nova York paralisaram meu roteiro natural de leitura e me provocaram uma vontade incontrolável: eu queria estar naquele restaurante imediatamente!

À época, uma vez ao mês, se não me engano, o Caderno 2 publicava uma página inteira luxuosamente produzida pela jornalista Katia Zero, brasileira que vivia em Nova York havia décadas. Katia sabia tudo sobre a cidade e criara um delicioso guia para conterrâneos se divertirem quando viajando por lá. Num pré-histórico mundo “googleless”, o guia de Nova York de Katia Zero era uma bênção, uma bússola e uma bíblia para turistas iniciantes. Eu o devorei quase literalmente nas primeiras três viagens que fiz a Nova York. Posso dizer que foi a Katia Zero quem me ensinou a pegar metrô, entender a geografia “avenues x streets” da cidade, a linguagem dos taxistas e, mais importante, a fazer reservas nos restaurantes escondidos mais interessantes. O guia da Katia era um estrondoso sucesso e foi a senha para que ela ganhasse uma página no Estadão. E escolhesse a inauguração de um restaurante que estava botando a cidade abaixo como uma de suas primeiras pautas. Assim, Katia também me ensinou o que era o Balthazar.

Foto: timeout.com

Mais do que isso, Katia, sem querer, injetou adrenalina pura na nossa veia empreendedora. Fazia menos de um ano que eu e meus sócios tínhamos nos aventurado no mundo dos bares e restaurantes, abrindo um botequim de meio de quadra no pacato bairro de Moema, o Bar Original. Nosso boteco caiu nas graças da galera, carente de lugares autênticos, supersimples, mas ricos em qualidade. Vivíamos inebriados por um sucesso inesperado, o primeiro empreendimento verdadeiramente autoral de nossas vidas voara alto e nos colocara num novo mundo, o do entretenimento gastronômico. Mas éramos novatos, tínhamos tudo para aprender, e assim passamos a nos alimentar diariamente de tudo o que nos atraísse nesse universo, famintos por conhecimento que nos inspirasse e pudesse se transformar em algo saboroso e divertido para nossos clientes. Todos os dias, visitávamos outros bares e restaurantes, nos encontrávamos com fornecedores, íamos a mercados, feiras, lojas de acessórios, antiquários, conversávamos com todo mundo que gostasse de comida, bebida e diversão. E tudo virava insight: dias depois, saía uma ideia nova para incorporarmos ao nosso boteco. Mas nosso ambiente de pesquisa era caseiro, a grana só permitia que perambulássemos pelos bairros de São Paulo e, com esforço grande, déssemos um pulo ao Rio para viver as maravilhas dos botequins de raiz. Nova York era um mundo superior, dos sonhos, onírico, milhas e milhas distante das nossas possibilidades. Mas Katia Zero nos lançou uma ponte. Ou uma isca...

Naquele dia, li umas três vezes a matéria sobre o Balthazar na página da Katia. Guardei o Caderno 2 e o levei para o almoço com meus sócios. Todos tinham feito o mesmo... Cheia de charme e bossa, Katia nos embebedou destrinchando a abertura do Balthazar.

O fato estava mesmo abalando as estruturas sólidas do entretenimento de Nova York e ela nos deliciava contando essa história. O restaurante, sua decoração retrô chique milimetricamente pensada e encomendada em mil partes do mundo, sua precisão temática nos detalhes da experiência, dos uniformes elegantes dos garçons aos guardanapos de pano de prato, sua fila de espera quilométrica recheada de celebridades, seu plateau de frutos do mar de três andares, tudo no novo Balthazar reluzia cinematograficamente. Mas de cinema mesmo parecia ser a biografia do cara que colocara esse galo em pé: com vocês, Keith McNally...

Cena 1, take 1: O jovem Keith sai de um subúrbio working-class londrino, em 1975, sonhando viver de arte em NY. Salta de bico em bico, em funções técnicas de produções alternativas de cinema. Cena 1, take 2: Keith conhece toda a cena outsider e boêmia de Manhattan. Faz bico de maître no hotel que atende as festinhas da trupe do Saturday Night Live. Fica íntimo do grupo.

Cena 2, take 1: Keith vai em busca de sustento. Com o irmão Brian e a paquera Lynn, resolve criar um ponto de encontro “after” para sua tribo, num bairro marginal. Descola uma cafeteria decadente no soturno Tribeca. Decora como um hall de cinema art déco, transa pratos de comfort food com acento francês e dá o nome de Odeon ao lugar. Cena 2, take 2: Os amigos artsy vieram dar uma força. E trouxeram seus amigos artsy mais famosos. Que trouxeram todo mundo. De Andy Warhol a Scorsese, de Warren Beatty a Cher, todos só queriam ir ao Tribeca dar a cara no Odeon.

Foto: STIRKLI News

Foto: STIRKLI News

Cena 3, take 1: O sucesso bombástico do Odeon estimula uma casa gêmea no Upper West Side, o Cafe LuxembourgCena 3, take 2: A devoção da galera outsider por McNally o leva a alugar uma antiga loja de eletrônicos, num limbo entre Chelsea e West Village na improvável rua 14, e criar o mais transgressor club noturno da cidade: Nell’s. Antro hi-lo, era decorado como um elegante “gentlemen’s club” de estilo vitoriano, mas era dedicado à cultura hip-hop e à máxima diversidade de público. Cena 3, take 3: McNally aluga um pequeno imóvel num canto ignorado do Soho e cria o Lucky Strikecoffee shop moderninho adotado por hordas da moda. Cena 3, take 4: A explosão simultânea de quatro casas inovadoras, em cantos da ilha nunca antes desbravados pelo entretenimento gastronômico, transforma o tímido e discreto McNally na cara oficial da noite downtown de Nova York.

Foto: touristsbook

Cena 4, take 1: A distância do mundo das artes desagrada Keith, que revela: “Não aguento mais ver gente comendo e bebendo!”. Ele volta para a Europa com Lynn, agora sua esposa. Escreve roteiros e filma longas. Recebe boas críticas, mas não voa no cinema. Cena 4, take 2: Keith e Lynn se separam e voltam para Nova York. Cena 4, take 3: Keith dá suas ações no Odeon, Luxembourg e Nell’s para Lynn e vai se reprogramar: compra uma fazenda no interior de Nova York e começa a criar porcos e cabras...

Bom, você deve estar se perguntando: e o Balthazar com tudo isso? Muita calma! Se o Homem-Aranha já está indo para o oitavo filme, por que o meu herói não pode ter três episódios? Semana que vem tem mais McNally, neste mesmo bat-canal.

 
 
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