#3 - Keith McNally, o retorno

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Depois de longos 7 anos afastado da cena gastronômica, Keith McNally sentiu saudade do tilintar de pratos e copos, do entra e sai de gente interessante, da atmosfera do sucesso ao vivo. “Um projeto grandioso me fazia falta”, declarou à época. Voltou então para Manhattan e montou um bar num porão do Soho chamado Pravda. A Guerra Fria já se afastara do ponto de combustão, mas foices e martelos ainda soavam mal na América. Mesmo assim, com doses geladas de marcas inéditas de vodca, comida a caráter e alto teor de atitude, o Pravda já dava o que falar no início de 1997. Foi ofuscado, no entanto, pelo golpe mais poderoso de McNally: Balthazar.

A obra-prima de Keith ocupava uma esquina até então pacata do Soho, Spring com Wooster, lado “east”, à época face outsider do bairro. Sempre em busca de rótulos, o Balthazar foi definido pelos especialistas locais como uma “brasserie nova-iorquina”. Mas, por mais que todos tentassem mapear detalhadamente o novo projeto de McNally, não conseguiam cravar o porquê das filas esparramadas porta afora até a Broadway, no final do quarteirão, e da mobilização histriônica de famosos e outros nem tanto em busca de uma mesa qualquer, em qualquer dia, qualquer hora, para comer um tantas vezes visto steak frites... Por que raios o Balthazar era um fenômeno sem precedentes numa cidade acostumada a sucessos explosivos?

Alguns apostavam que era graças a suas dimensões portentosas, seu pé-direito altíssimo e principalmente seu décor retrô chique ultraplanejado e lapidado centímetro por centímetro por um restauranter assumidamente maníaco por detalhes cênicos. Outros diziam que era pela forma transada e cheia de personalidade escolhida pelo Balthazar para servir seus pratos, uma coleção de clássicos supermanjados, celebrizados pela tríade bistrôs – cafés – brasseries franceses, mas ali redesenhados com procedência qualificada de matérias-primas e sofisticação criativa ao chegar à mesa. E havia aqueles que insistiam que o fenômeno se devia ao poder sobrenatural de McNally de atrair as pessoas mais interessantes do pedaço para seus espaços. Pois, como todos sabemos, no mundo de bares e restaurantes gente bacana atrai gente bacana, formando uma massa poderosa de gente bacana que acaba atraindo por gravidade o mundo todo... Mas, mesmo assim, era difícil explicar, pois Nova York estava cheia de lindos espaços gastronômicos com pé-direito industrial, repletos de mobília e luminárias de bom gosto garimpadas em antiquários chiques do Chelsea, pisos de pastilhas bem instalados e louças de origem, frequentados pela tal gente bacana, celebridades e afins... Afinal, o que o Balthazar tinha de mágico?

Depois de lermos por incontáveis vezes a página da Katia Zero no Caderno 2 apresentando o Balthazar para nós, brasileiros, naquela longínqua sexta-feira de 97 que mencionei na semana passada, foi essa a pergunta que eu e meus sócios Edgard, Sergio, Mario e Fernando nos fizemos infinitas vezes... e, sem resposta, ousamos durante um “happy hour de trabalho” no nosso Bar Original: “Vamos lá entender qual é a desse Balthazar!”. Batemos os copos, reservamos passagens, pagamos a prazo e 4 meses depois voávamos para a Big Apple com uma ideia na cabeça: decifrar o segredo dourado de Keith McNally.

Chegamos à cidade numa segunda-feira de outubro e rumamos certeiros para Downtown perto das 11 horas da manhã. A ideia era chegar antes de o almoço começar e tentar fisgar uma das mesas guardadas para “walk-ins”, os destemidos clientes “sem reserva e cheios de esperança”. Ao chegar, a primeira surpresa: o Balthazar já transbordava alegremente naquela hora, pois também abria para café da manhã... Meio atordoados, deixamos nossos nomes com a linda hostess de sotaque francês, fingimos sair pela porta como quem nem queria tanto assim uma mesa e demos meia volta para flanar atônitos e flertar com lupa o aclamado salão do Balthazar. Ao vivo, o danado era tudo o que a Katia nos contara. E muito mais! Meio que perdemos a fala, olhávamos vidrados aquela atmosfera âmbar que explodia no espaço fazendo brilhar nossas retinas. Era um lugar verdadeiramente mágico, um quebra-cabeça animado de umas 5 mil peças onde cada uma delas parecia se encaixar à perfeição, sem sinais de emendas. A combinação de cores dos gigantescos painéis de madeira escura, das paredes esfumaçadas em amarelo-ouro, do teto de zinco martelado e dos estofados vermelho carmim criavam um fundo refinado, passadista, quase nobre. Mas os arranjos de flores, as gigantescas estátuas nas colunas, os espelhos cuidadosamente envelhecidos sobre os quais o cardápio se apresentava ora em letras cursivas displicentes, ora em tipologia art déco, os ventiladores de teto simétricos ligados em velocidade mínima, a trilha sonora eclética e os jalecos despojados dos garçons que desfilavam sorrindo seguros pelas praças davam movimento, graça e descontração àquela atmosfera, criando um ambiente contagiante. Minha primeira impressão, sem saber da relação de McNally com o cinema, era de que todos nós estávamos dentro de um filme. O segredo do Balthazar era não ser apenas um restaurante: assim como Hemingway definiu Paris, o Balthazar era uma festa. Daquelas de cinema, em que todos nós sonhamos um dia estar. E aqui estávamos.

Uma hora e meia depois, voltamos para checar nossa posição na fila de espera... Tínhamos evoluído pouco. Edgard teve a ideia de perguntar se podíamos comer no bar. Recebemos um simpático sim e nos amontoamos em frente ao expositor de ostras. Uma hora depois, havíamos comido quase todo o estoque de moluscos do Maine e bebido uma quantidade assustadora de Dry Martinis. Obviamente fizemos amizade com o bartender do dia, que, talvez cansado de mexer doses de Gin, viabilizou uma mesa no salão principal para nosso resiliente time. Confesso que nem lembro o que comemos à mesa: steaks, burgers, confit de pato talvez. Mas recordo que, na nossa conclusão, a comida do Balthazar era gostosa, transada, familiar e confortável. Mas era umami puro quando combinada àquele interminável clima de alegria que embevecia todos os nossos sentidos além do paladar. Nessa viagem, peregrinamos pelos outros projetos de McNally: Odeon, Lucky Strike, Pravda. Fomos também mais duas vezes ao Balthazar para reviver aquele estado constante de festa. E a sensação se repetia, aquela atmosfera voltava a nos enfeitiçar. Nunca falamos oficialmente sobre isso entre nós, mas tenho convicção de que conhecer o Balthazar foi o mais importante marco de nossa jornada empreendedora. A partir dali, calibramos nossas referências, expandimos nossa capacidade de sonhar, impulsionamos nosso desejo por fazer projetos bonitos que transportassem nossos clientes para alguma festa que os traria felicidade por algumas horas. Passamos a desejar com ainda mais paixão nos tornarmos restaurateurs admirados. O Balthazar nos deu uma missão.

Vinte e dois anos depois, sigo frequentando o Balthazar todas as vezes que venho a Nova York. Ontem à noite estive lá. A festa não é a mesma, é fato. Hoje há mais turistas convencionais como eu do que tipos nova-iorquinos exóticos e charmosos. As filas não extrapolam as portas da casa. A comida nunca decepciona, mas tampouco surpreende. E o cinematográfico décor retrô chique que virou a cidade de cabeça pra baixo décadas atrás já virou uma paisagem quase familiar. Pouco importa. Sempre volto ao Balthazar com um sorriso no rosto por poder celebrar a grandeza da resistência de um clássico que mudou para sempre a história da gastronomia casual mundial. E, menos importante, que transformou também a minha história.

[ Se você curte o Balthazar, leia também: “Just another quiet night out for Keith McNally” ]

 
 
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